A Portaria 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002, assinada pelo então ministro da Saúde, José Serra, e reafirmada no governo subseqüente, estabelece as regras de funcionamento dos CAPS. Em seu artigo 3º, determina que "os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) só poderão funcionar em área física específica e independente de qualquer estrutura hospitalar". O motivo de tal determinação é claro: o de evitar que a lógica de funcionamento manicomial se reproduza na forma de funcionamento dos CAPSs nascentes, permitindo que eles possam cumprir a função para a qual foram criados.
No caso específico da cidade de Sorocaba, poderíamos estar satisfeitos com as informações repassadas pela Prefeitura Municipal, de que teríamos 10 CAPSs na cidade, o que significaria o estabelecimento de uma rede substitutiva aos manicômios na cidade. Estes dados, no entanto, causam estranheza: se tantos CAPSs foram abertos, por que os leitos em manicômios não foram reduzidos de forma substancial? A resposta a esta pergunta passa por uma análise da rede dos supostos CAPSs de Sorocaba. Vamos a ela.
O primeiro grupo, de três supostos CAPS, é constituído por unidades diretamente ligadas, física e administrativamente, a hospitais psiquiátricos da cidade. Conforme informação veiculada em reportagem de um jornal local - "Conselho quer tratamento em nível ambulatorial" - em maio de 2010, são eles os denominados CAPS Infantil Vera Cruz, o CAPS II Vera Cruz e o CAPS Teixeira Lima. Estas unidades estão em claro desacordo com a legislação citada anteriormente, de independência dos CAPSs em relação a instituições hospitalares e, portanto, não podem ser consideradas Centros de Atenção Psicossocial, como de fato não o são pelo Ministério da Saúde.
Situação semelhante à anterior é a do suposto CAPS de álcool e drogas adulto, administrado pela Associação Protetora dos Insanos. Tal Associação é mantenedora do Hospital Psiquiátrico Jardim das Acácias desde a década de 50, quando o mesmo se denominava ainda Instituto de Higiene Mental "Dr. Luiz Vergueiro", e mantém com o mesmo uma relação de total interdependência, o que não lhe possibilita ser mantenedora de um CAPS pela portaria supracitada, justificando-se o não-reconhecimento por parte do Ministério da Saúde a este suposto CAPS.
O terceiro caso refere-se aos supostos CAPSs que, na verdade. configuram-se como ambulatórios especializados em Saúde Mental e são reconhecidos enquanto tal pelo Ministério da Saúde. É o caso de dos denominados CAPS II Jardim das Acácias (da avenida Dr. Armando Salles de Oliveira, no bairro do Trujillo) e um dos do CAPSs Infantil gerido pela Associação Pró-Reintegração Social da Criança (da rua Luíza de Carvalho).
É importante ressaltar que as exigências para o reconhecimento de uma unidade como ambulatório são diferentes das que se referem aos CAPS, o que significa que tais unidades, embora funcionem como ambulatórios, não podem legalmente ser consideradas como Centros de Atenção Psicossocial.
Passemos aos quatro supostos CAPSs restantes, estes sim reconhecidos pelo Ministério da Saúde enquanto tal. Todos eles são cadastrados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), como sendo de administração direta pela Prefeitura. Três deles, no entanto, são repassados de outras instituições. Uma delas, a Associação Pró-Reintegração da Criança, não será aqui questionada, uma vez que não se configura como uma instituição com histórico manicomial, sendo, portanto, legítimo o reconhecimento pelo Poder Público de uma de suas unidades como CAPS infantil, conforme a lei estadual 4.053, de 20 de agosto de 1957.
Obtivemos informações acerca do cadastramento de dois destes CAPS no plano estadual, ambos aprovados sob gestão plena do Sistema Municipal: CAPS-AD (álcool e drogas) Jardim das Acácias, na Deliberação CIB-155, de 12 de dezembro de 2006; e o Centro de Atenção Psicossocial Infantil de Sorocaba/CAPS, na Deliberação CIB-124/2006, localizada na avenida Itavuvu. O mesmo não se pode afirmar de outros dois supostos CAPS, o CAPS de álcool e drogas jovem e o CAPS II (da praça Nova York), ambos com gestão repassada à Associação Protetora dos Insanos.
O repasse da gestão de um CAPS cadastrado junto ao Ministério da Saúde como administrado diretamente pela Prefeitura de Sorocaba a uma instituição historicamente ligada, instrínseca e historicamente, a um manicômio da cidade revela, se não uma ilegalidade, certamente uma imoralidade, uma vez que a portaria que define as regras de funcionamento dos CAPS é negligenciada neste processo. O último suposto CAPS, o Ambulatório de Saúde Mental de Sorocaba, pode ser considerado legitimamente como tal, ainda que a Prefeitura prefira chamá-lo como Ambulatório em seu nome oficial.
Concluindo: uma análise mais acurada demonstra que a Prefeitura local divulga informações enganosas à população. Dos supostos dez CAPSs divulgados, apenas quatro são reconhecidos pelo Ministério da Saúde e dois
deles graças a um subterfúgio que está em desacordo com a portaria que regulamenta o funcionamento dos CAPSs. Por este motivo, apenas duas unidades podem ser consideradas legitimamente como Centros de Atenção Psicossocial em Sorocaba. As restantes podem, quando muito, ser nomeadas como ambulatórios. Chamá-las de CAPSs corresponde a uma afirmação enganadora e desrespeitosa em relação ao histórico de lutas pela reforma psiquiátrica no Brasil e à população sorocabana, que tem direito ao acesso à informação correta.
Marcos Roberto Vieira Garcia é doutor em Psicologia Social pela USP (Universidade de Säo Paulo), professor adjunto da UFSCar-Sorocaba, coordenador do Núcleo de Sorocaba da Associação Brasileira de Psicologia Social e membro do conselho gestor da subsede local do Conselho Regional de Psicologia Marcos Roberto Vieira Garciadoutor em Psicologia Social pela USP e professor da UFscar
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